Mais uma conversa com uma autora da antologia de contos de terror Sangue, que será publicada em setembro pela Trebaruna. Hoje conhecemos Sandra Henriques, que ganhou o prémio europeu no concurso de flash fiction da European Association of Creative Writing Programmes e além de ficção escreve livros de viagens!
Olá Sandra, desde já muito obrigada por me ceder esta entrevista.
Como surgiu o seu gosto pela escrita?
Obrigada eu pelo convite, Liliana.
É mais do que um gosto, diria que é a minha forma favorita de me expressar (e eu, no ambiente certo, já falo pelos cotovelos se me deixarem). Mesmo antes de saber ler e escrever, já me perdia no tempo a desenhar bolinhas (que eu achava que eram letras) em cadernos de linhas e a inventar histórias com os brinquedos. Lembro-me que, como ainda não sabia ler, olhava para os desenhos nos livros infantis e inventava as minhas próprias histórias baseadas nas imagens. Às vezes acertava, outras vezes a minha versão era completamente ao lado (e não necessariamente pior).
Participou da antologia de contos Sangue Novo em 2021. Como surgiu o convite e qual o seu primeiro pensamento quando o recebeu?
Desde 2014 que escrevo sobre viagens e turismo cultural, duas áreas que sofreram imenso com os confinamentos de 2020 e 2021. Por isso, sem trabalho e sem clientes, e como não gosto de estar parada, achei que era a altura ideal para fazer cursos online. Um deles foi o Escrever Terror (da Escrever Escrever) em Abril de 2021. Até ali, por muito que quisesse aventurar-me a escrever ficção e especificamente de terror, achava que não tinha “jeito” e então o curso serviria para aprender e incentivar-me a escrever um ou outro texto e depois logo se via.
O Pedro Lucas Martins (o formador) convidou-me e às minhas três colegas de turma logo na segunda sessão e de repente ter esse feedback de um autor publicado e premiado fez toda a diferença. Disse logo que sim, mas com uma pontinha de medo de onde me estava a meter. De qualquer das formas, encarei isto como uma oportunidade de escrever o meu primeiro conto de terror em português e com o auxílio de um editor que é muito bom naquilo que faz (e encontrar bons editores, que respeitam o texto e o autor, não é fácil). Dos três contos que submeti, o “Praga” foi o escolhido.
Participou novamente para a nova antologia, escrevendo um conto intitulado de Equilibrio. Como surgiu a ideia para este conto?
Sem revelar muito, a primeira imagem que me surgiu do conto (e geralmente é assim que todas as histórias começam na minha cabeça) foi aquela que está descrita no parágrafo de abertura. Aquela personagem (que ainda não tinha nome), aquele ambiente e aquela angústia. Esse pedaço de texto ficou a marinar nas notas do meu telemóvel durante meses, muito antes de pensar em submete-lo à antologia.
Depois, com a ajuda do tema (e raramente gosto de escrever com um tema fixo, mas neste caso ajudou) a história foi-se desenrolando. Quando estou a escrever a primeira versão de um texto (seja de ficção ou de viagens) deixo fluir. Entro in the zone, como lhe chamo, e é como se estivesse a transcrever o que a “outra” Sandra está a contar-me. Eu sei que isto parece estranho e uma coisa meio inventada, mas é mesmo o início do processo, quer esteja inspirada (leia-se, com vontade de escrever) ou não. Depois na revisão e na reescrita é que vou questionando se é aquele o caminho certo para aquela história ou aquelas personagens.
Esta resposta longa para dizer que o Equilíbrio é um conto de mulheres para mulheres, no sentido em que eu acho que a interpretação das mulheres vai ser diferente da dos homens. Há pequenos detalhes que deixei abertos à interpretação precisamente por isso. E depois um dia talvez explique o que querem dizer. Mas também posso estar errada e ser completamente diferente disto. Desde que dei a revisão por terminada que o conto deixou de ser “meu”.
O que a atrai na escrita de um conto?
Não acho que escreva contos “de propósito”, no sentido de preferir este formato a outros. Simplesmente ainda não me aventurei a escrever coisas mais longas. Acho que isso precisa de uma certa dose de autodisciplina que ainda não domino, quer porque comecei a escrever ficção há um ano, quer porque a vida profissional nem sempre me permite parar o que estou a escrever (não-ficção) para escrever um romance, por exemplo.
Ganhou o prémio europeu no concurso de flash fiction da European Association of Creative Writing Programmes. O que significou para si, este prémio?
Foi uma surpresa, um sinal e um incentivo. E uma alegria enorme, claro. Uma surpresa, porque o tema não era de terror, mas o conto “puxava” para esse lado e podia ter sido mal recebido pelo júri. Um sinal, porque consegui “infiltrar” um conto de terror num concurso de escrita genérico, o que me levou a ter esta ideia de legitimar o terror e de mostrar que ele existe em muitíssimas versões e estilos. E um incentivo porque respondeu àquela dúvida se eu tinha “jeito” para escrever ficção (eu sou a minha pior crítica).
E festejei com alegria, claro, sobretudo porque, como na eurovisão, o júri português não podia interferir e dar pontuação ao meu conto, nem os residentes em Portugal podiam votar. Não houve aqui cunhas nem pedidos aos amigos e a família para votarem em mim (e ainda bem porque eu tenho zero jeito para pedir esse tipo de coisas).
Qual o truque para escrever um conto com apenas 100 palavras?
(eu só nestas perguntas tenho 200 palavras)
Treino, treino, treino. E muita falta de amor pelas nossas personagens, pela história, por aqueles adjetivos a mais.
Tenho a vantagem de escrever conteúdos para plataformas digitais há algum tempo. Quem lê conteúdo num site ou numa aplicação móvel dispersa-se com muita facilidade, por isso os textos tem de ser muito objetivos mas não totalmente desprovidos de “voz”.
É mesmo com treino que se chega lá e, no meu caso tive bastante sorte, com bons editores que fazem de advogados do diabo. Por exemplo, a escrever um guia sobre Lisboa para uma aplicação móvel havia campos em que tinha de descrever um bairro ou uma atração turística em 30 palavras, no máximo. No caso d’ “A Encarregada”, a Albertina apareceu-me primeiro (e não me saiu da cabeça) e eu imaginei-a com os gatos do Cemitério dos Prazeres: cuidadora, mas aborrecida com o seu trabalho fixo; eficiente, mas cansada das tarefas repetitivas.
Antes deste, tinha escrito outro micro-conto de 100 palavras como exercício do curso de Escrever Terror e o foco era o mesmo: a personagem. Ambos os contos devem ter começado com umas 200 ou 300 palavras cada um, muito descritivos, muito detalhados, e depois foi “desbastar”, mas deixar que a personagem e a sua forma de fazer as coisas seja única daquela pessoa e que influencie toda a ação do conto.
É cofundadora do projeto Fábrica do Terror. Para quem não conhece em que consiste o mesmo?
De forma simples, é uma plataforma digital onde agregamos e divulgamos todo o terror que se faz em Portugal, em todas as vertentes artísticas possíveis. Temos submissões abertas para contos de terror originais em português (até 1000 palavras), curtas-metragens, ilustração, fotografia, música.
Temos um espaço para entrevistas a criadores, escrevemos artigos que podem servir de inspiração a obras de terror. E estamos também a criar uma secção a que chamámos de Catálogo de Terror Português onde vamos listar todas as obras de terror nacionais (livros, filmes, videojogos).
Já havia alguns sites de terror em Portugal, mas de fãs do género para fãs do género e focados não só apenas no que se faz por cá. Com a Fábrica do Terror queremos dar visibilidade ao que já existe (e existe tanto!) para incentivar a que se produza mais; se os criadores não virem que já existe, vão achar que não há público e que não vale a pena fazer nada deste género em Portugal.
O projeto começa pela nossa necessidade de querermos saber onde estão as outras pessoas como nós, que criam terror em Portugal; será que não existem? Será que desaparecem nos meses em que não acontece “nada” (ou seja, quando não há eventos, como o MOTELX, ou o Fantasporto, ou o Fórum Fantástico)? Na era do digital deveríamos estar a um clique de distância de toda esta informação e ainda não estávamos.
Temos quase seis meses de existência e já encontrámos tantos novos criadores que nos dizem, precisamente, que não tinham onde divulgar o seu trabalho, e isso é o melhor de tudo, sentirmos que criámos este espaço, sempre de portas abertas.
Que livro, já publicado, a Sandra gostava de ter escrito?
Honestamente, nenhum. Aprecio cada livro por aquilo que ele é (mesmo que não goste da abordagem ou do género): a obra do seu autor. Há livros que me inspiram, claro, e alguns que releio com alguma frequência (o “Something Wicked This Way Comes”, do Ray Bradbury é um deles), mas nunca os li e pensei “este era o livro que eu gostava de ter escrito”.
Acha que o autor escreve para si ou para quem o lê? Ou seja, qual é o seu objetivo quando está a escrever?
Na ficção, escrevo para mim, mas gosto de saber por que caminhos o leitor vai quando le os meus textos, que interpretação faz, que personagens é que gosta ou não gosta e porquê. Tento, contudo, que a caracterização das personagens seja o mais clara possível.
No Equilíbrio, por exemplo, há uma personagem em concreto que é apenas referida como “marido de”, não tem nome. Porquê? É o que espero que os leitores descubram e me digam. Quando construí a personagem assim, pensei em duas interpretações possíveis, mas ficarei muito curiosa se os leitores arranjarem mais do que duas formas de ver aquela personagem. E uma nota aqui de escritor para leitor: deem-nos feedback, do que gostaram e do que não gostaram; é das coisas que sinto mais falta.
Na escrita de viagens, tenho de pensar em muitos leitores quando escrevo e é sobretudo para eles que escrevo. “Especializei-me” em escrever sobre Lisboa e, por isso, quando escrevo tenho de ser eu à mesma (eu estou muito presente nos meus textos de viagens).
Mas pensar que quem me lê pode ser alguém que nunca viajou até ca, ou alguém que vem a Lisboa pela primeira vez em 10 anos, ou alguém que vive cá e que está um bocadinho cansado de turistas. E, então, aí tenho a responsabilidade acrescida de informar quem vem de certas coisas que para nós são básicas como, por exemplo, os velhotes que moram na Mouraria precisarem do elétrico 28 para chegar ao Cemitério dos Prazeres, que o elétrico não é um transporte turístico, é um transporte público. E talvez essa informação alivie um bocadinho o impacto.
Do género “quem leu o livro x gostará da Antologia Sangue”, que livros escolhia?
Pergunta complicada, esta, até porque ainda não li os outros contos. Diria que quem leu o Sangue Novo vai gostar do Sangue porque tem muitos dos autores que participaram na outra antologia.
Acho que quem leu Os Medos da Cidade também, porque, tal como no Sangue, apesar de o tema ser o mesmo, foi a interpretação de cada autor que fez com que os contos não se encaixassem num determinado género. Quem gosta de terror, vai gostar da antologia; quem gosta de uma boa história e de conhecer novos autores portugueses, também.
Por fim, o que nos pode contar sobre os seus projetos futuros?
Vou continuar a trabalhar na Fábrica do Terror, claro. Ainda temos muito caminho para andar (e isso é bom).
Até ao final de 2022, estou a terminar dois livros de viagens em inglês (em co-autoria com mais cinco escritores num e mais um escritor no outro), que devem sair em 2023 (é o máximo que posso revelar agora). E ainda tenho mais dois projetos de livros em que estou a colaborar e que deverão sair em breve.
A minha escrita de ficção infelizmente tem sofrido um bocadinho com estes projetos, mas prometo voltar a ela em breve. Todos os dias escrevo ficção, nem que seja um parágrafo solto escrito a pressa num pedaço de papel ou nas notas do telemóvel e todos os dias tenho uma ou outra personagem que não me saem da cabeça (e enquanto elas lá estiverem, é certinho que vão ter uma história só delas).
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Fotografia da Autora, créditos: Ricardo Alfaia