E cá estou eu de novo com uma entrevista a mais um autor, desta vez paramos mais a sul, nascido e criado na Margem Sul, trabalhou numa editora e ganhou inúmeros prémios literários, falo de Bruno Vieira Amaral. Convido-vos a conhecer mais sobre o autor e sobre o seu trabalho!

Olá Bruno, desde já quero-lhe agradecer a oportunidade de o entrevistar. 

Se tivesse de convencer/incentivar uma pessoa que não o conhecia enquanto escritor a ler um dos seus livros, qual escolheria, e que argumentos usaria a favor da sua obra?

A minha sugestão seria As Primeiras Coisas, o meu primeiro romance, publicado em 2013. É um romance que tem a liberdade, a anarquia e a voracidade dos primeiros romances. Num primeiro romance há a tendência para se atirar lá para dentro tudo o que se sabe e tudo o que se é, o que pode resultar numa gloriosa confusão, como acho que é o caso d’As Primeiras Coisas. Mas um livro só é nosso se tiver as nossas qualidades e os nossos defeitos. Nesse sentido, esse é o meu livro que mais se parece comigo.

O seu primeiro romance As primeiras coisas, ganhou cinco prémios literários, o que é um grande feito, para a estreia no mundo literário. Qual é a sensação de ver o seu trabalho reconhecido pelos críticos? Ou tem mais peso as opiniões os leitores?

A opinião dos leitores e dos críticos é uma coisa que acontece ao livro depois de o escrevermos. Não altera em nada o que foi feito e nenhuma opinião, nenhuma crítica, nenhum prémio, me provocam o desejo de alterar seja o que for. É bom sentir que a intenção presente no momento da escrita foi compreendida por alguém ou descobrir, através das leituras dos outros, coisas de que não estávamos conscientes na altura em que escrevemos. Mas, repito, são coisas que vêm depois, são exteriores ao livro e o escritor nada pode fazer para as controlar, portanto, o melhor é não nos preocuparmos excessivamente com isso.

Foi através desta obra que o conheci enquanto autor, e pergunto-lhe, qual a razão para um prólogo tão comprido? É muito provavelmente o maior que já li até hoje.

A intenção inicial era a de ter um prólogo mais curto. Acontece que gostei tanto do que estava a escrever, achei que havia tantas coisas para dizer sobre o narrador naquela situação particular que fui em frente, sem pensar no equilíbrio final da obra, sem pensar se era demasiado longo ou se não era longo o suficiente. Quando falava de liberdade, era também dessa liberdade que falava: a de seguir o instinto e não uma suposta fórmula. Aliás, a não ser em géneros muito específicos, as fórmulas são habitualmente uma receita não para o sucesso, mas para o desastre.

No seu segundo romance, escreveu sobre o assassinato do seu primo, João Jorge. Como é que foi investigar sobre um crime que envolve a sua família, e posteriormente passá-lo para o papel? Existe uma autocritica superior do que ao abordar a vida de outros, ou a ficção?

A história real do assassínio do meu primo foi apenas o ponto de partida do romance. À medida que o ia escrevendo, apareceram outros temas, uma espécie de ramificações, sendo que o tronco era a história de um crime e, em parte, a história da minha família.

Mas, a partir de um determinado momento, a família, a verdade factual, os pormenores verídicos tornam-se secundários porque o que interessa é a orgânica interna do romance, pois é disso que se trata, de um romance e não de um livro de memórias ou de um relato de não-ficção. Muitos dos episódios relatados, bem como algumas das personagens, nunca aconteceram. Porém, é essa a arte do romance: escrever coisas que não aconteceram, mas que são verdadeiras. 

Publicou este ano um livro de contos, Uma Ida ao Motel e Outras Histórias que aborda as histórias da gente da Margem Sul, como surgiu o mote para este livro?

As histórias do livro não são apenas sobre pessoas da Margem Sul, ainda que várias sejam. Comecei a escrever um conto semanal para o Expresso online, a convite do Germano Oliveira, em 2018. A ideia era escrever contos que, por simplicidade, classificarei de realistas, e que fossem mais diretos, narrativamente mais “puros”, do que os meus romances, em que há um certo pendor meta-literário ou de reflexão, entretecida no texto, sobre a própria natureza do romance, apagando a fronteira entre registos. Aqui, não.

Queria contar episódios, explorar determinadas situações dramáticas, analisar personagens e os seus sentimentos e pensamentos num dado momento da sua vida, usando, no entanto, uma variedade de registos narrativos (da narração não fiável na primeira pessoa à narração aparentemente objetiva na terceira pessoa, do discurso indireto livre a formas narrativas mais convencionais; do uso meridiano do diálogo ao mergulho na consciência perturbada de uma personagem; do registo cómico ao trágico, de uma abordagem mais, por assim dizer, sociológica, a abordagens mais intimistas e atmosféricas, etc.) que desse uma outra amplitude ao conjunto dos contos.

Esse objetivo foi alcançado e essa foi a razão para ter aceitado publicar cerca de metade dos contos que escrevi.

Todos os seus livros trazem ao leitor a realidade da Margem Sul. Por exemplo, lembro-me de uma história no As primeiras coisas que abordava a questão os abortos naquela época e confesso que me chocou, e que ficou gravado na memória a forma como tudo era feito, e pelo que passavam aquelas mulheres. Que emoções pretende provocar no leitor quando aborda a realidade do quotidiano daquelas pessoas?

Penso que qualquer escritor quer que aquilo que escreve permaneça com o leitor muito depois de este ter terminado a leitura, seja através da inteligência, da originalidade de um pensamento, da força de uma imagem inédita ou, como no caso que refere, do choque emocional.

A questão é que ninguém sabe como é que isso funciona porque cada leitor é um universo e ninguém reage da mesma maneira aos mesmos textos. Nesse caso em particular, eu estava a escrever partindo de uma realidade muito dura e quis que o texto fosse o mais direto e cru possível na esperança de provocar no leitor o incómodo físico e moral que, imagino eu, era sentido pelas mulheres que viviam aquela situação.

Não bastava dizer que era uma situação incómoda ou violenta, era preciso mostrar de que forma essa violência se manifestava. E aqui entra, a meu ver, o conceito de imaginação moral, que eu acho fundamental num escritor: a capacidade de dramatizar determinados problemas, enchê-los de vida e de verdade, independentemente de os termos vivido ou não.

Numa entrevista ao Diário de Notícias á uns anos, disse que não queria fazer da Margem Sul matéria literária nem tinha intenção em recuperar o espaço. Acha que o facto de conhecer tão bem o que está a escrever acaba por conseguir transportar o leitor para todo aquele espaço de uma forma diferente?

Como diz, eu escrevo sobre esse território geográfico, que é para mim também um território mental e afetivo, não para o transformar em matéria literária ou para reabilitá-lo aos olhos de quem apenas o vê através das lentes do preconceito ou do conhecimento superficial, mas porque o conheço bem. E quando se conhece bem alguma matéria é mais fácil trabalhá-la com esse instrumento de que falei há pouco, a imaginação moral, que é o que permite, por exemplo, criar uma personagem de raiz mas que, de algum modo, o leitor sente que pertence integralmente ao mundo que se está a descrever.

A sua vida profissional passou por uma editora, e ultimamente muito se têm falado do mundo editorial nacional, em que são poucos os autores que conseguem publicar pelos meios tradicionais. Quais é que são aquelas características que um autor tem que ter para conseguir vingar no mundo literário em Portugal?

Saí há quatro anos da editora, embora o facto de ter trabalhado como crítico e depois na área de comunicação de uma editora tenha tornado mais fácil o processo de publicação porque as pessoas do meio conheciam o meu trabalho e o meu estilo. É mais difícil para um autor que está fora do meio literário e editorial captar a atenção de um editor, por exemplo, mandando um original para a editora porque será um entre centenas e, posso dizê-lo por experiência própria, o nível geral é bastante baixo.

Já fiz parte de júris de prémios literários para inéditos e posso garantir que a qualidade é muito baixa. Mas também posso garantir que, quando a qualidade existe, ela é reconhecida. Há dois anos fiz parte do júri do Prémio Literário Cidade de Almada e, no meio de esforços muito pobres, houve um livro que se destacou claramente pela qualidade, pelo domínio da linguagem, pela força narrativa.

A autora, Carla Pais, até já tinha publicado um livro, mas, de acordo com as regras, concorreu sob pseudónimo, e isso não obstou a que o júri fosse unânime em reconhecer a qualidade do texto, independentemente de quem seria o autor.

Quando estava na editora, uma amiga enviou-me um original de uma colega de faculdade e, quando o li, fiquei impressionado e disse para mim mesmo que estava ali, completamente formada, uma grande escritora. O nome dela é Djaimilia Pereira de Almeida e hoje é uma escritora reconhecida e premiada, mas na altura ainda não tinha publicado nenhum livro (aliás, o livro a que me refiro nem chegou a ser publicado, pelo menos até agora.)

Acredito que, mais cedo ou mais tarde, a qualidade e o talento são reconhecidos. Às vezes demora mais, outras vezes demora menos. Como em tudo, também é preciso um pouco de sorte.

Acha que por parte das editoras existe recetividade em editar um autor que é desconhecido do público, ou há um elevado grau de exigência?

Nenhum escritor nasce conhecido por ser escritor. Até pode ser reconhecido pelo seu trabalho noutra área e isso tanto pode ajudar como pode ser um obstáculo a que o reconheçam enquanto escritor. Portanto, todos os escritores nascem desconhecidos e teve de haver um editor, num ponto do caminho, que acreditou naquele escritor. Se isso não acontecesse, não teríamos novos escritores a aparecerem. Se aparecem é porque alguém apostou neles.

Outra questão é saber se essa aposta compensa a curto prazo. A minha resposta é: não. Só em casos muito raros é que um escritor consegue grande notoriedade ao primeiro livro, o tipo de notoriedade que torne menos arriscada a publicação de um segundo livro.

O problema é que as editoras, muitas delas geridas de forma meramente economicista, sem atender à especificidade do livro (enquanto produto, que também é, um livro não é comparável a um carro, a sabonetes ou a batatas), têm pouca paciência para “ir fazendo” um autor, ou seja, continuar a publicar um autor porque se lhe reconhece qualidade mesmo que as vendas sejam desencorajadoras. Aí é que entram a coragem, o conhecimento e o instinto dos verdadeiros editores.

Um editor que, por imposição de gestores que pouco ou nada percebem de literatura, esteja de mãos atadas para construir um catálogo já não é um editor, é apenas um funcionário da editora.

E por fim, tem planos para novos projetos num futuro próximo?

Estou a trabalhar há dois anos e meio na biografia do José Cardoso Pires. Espero conseguir acabá-la ainda este ano para ser publicada no início do próximo.

Onde podem conhecer mais sobre o Bruno

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