Pedro Garcia Rosado é o meu convidado de hoje para uma conversa literária. Com diversos livros publicados é um escritor conhecido do público português, sendo uma referência nos policiais no panorama nacional. Além disso foi também tradutor, sendo conhecedor do mercado literário. Recentemente lançou “O Último Refúgio” um thriller viciante e passado em tempos de pandemia. Convido-vos a conhecer melhor o autor e as suas obras.
Antes de mais, Pedro, agradeço a sua disponibilidade para esta entrevista. Quando entrou a escrita na sua vida? Sempre teve o sonho de ser escritor ou foi algo que acabou por acontecer?
Li sempre muito e na adolescência até fui escrevendo algumas histórias, situadas na área da literatura fantástica. É possível que em algum momento pudesse ter querido escrever histórias e vê-las publicadas, o que já faria de mim escritor, mas depois, quando comecei a trabalhar como jornalista (que era o que queria fazer), deixei de pensar em escrever histórias.
Vinte anos mais tarde, tendo deixado a profissão, deixei de estar obrigado a escrever regularmente e de forma concentrada e dispus de mais tempo para tentar escrever uma história em formato de livro (mais de 200 páginas). Consegui. E foi assim que nasceu o meu primeiro romance, “Crimes Solitários”, em 2004. Até 2014 publiquei mais nove. E agora saiu “O Último Refúgio”.
O seu mais recente livro, publicado em 2021, é “O Último Refúgio” que tem como cenário Baltimore e Lisboa. Em Lisboa já viveu, mas alguma vez viveu nos Estados Unidos?
Não. A escolha de Baltimore decorreu da opção por uma personagem estrangeira (James Castello) como pivô da narrativa. Sou fã da série televisiva “The Wire”, passada nessa cidade, e ainda pensei na hipótese de fazer referências directas a pormenores da série, mas havia um desequilíbrio de quase vinte anos entre as duas narrativas, o que inviabilizou logo essa hipótese.
Como surgiu a ideia para este enredo?
Na região rural onde moro, no interior do concelho de Caldas da Rainha, há casas antigas em ruínas e algumas delas têm sido recuperadas por estrangeiros. A ideia de base foi esta: e se uma destas casas tem uma cave onde estão escondidos cadáveres de pessoas assassinadas? O ideal seria que quem morasse nela estivesse dentro do segredo e funcionasse como guardião. Partindo daqui, e enquanto passeava os cães, fui imaginando todas as variações possíveis.
Um dos aspetos interessantes é que incorpora na história a pandemia. Foi algo programado, ou incluiu essa particularidade posteriormente na história?
A história de “O Último Refúgio” nasceu, precisamente, no início da crise sanitária, quando a tradução que ia fazer, em Abril de 2020, foi adiada por dois ou três meses.
Esse meu momento de ócio forçado e tudo aquilo a que já se assistia (os primeiros efeitos da epidemia, o medo inspirado pelos relatos da televisão, a loucura das máscaras, o isolamento das pessoas e a restrição das liberdades) criaram o caldo de cultura para a história. E foi também uma curiosidade que tive: ainda conseguia escrever uma história original? Conseguia. E nasceu assim “O Último Refúgio”, que, por comparação com um estilo de música clássica, é um “divertimento”.
Quando começou a escrever este livro tinha delineada a ideia exata do que iria acontecer, ou vai improvisando à medida que vai escrevendo?
Como muitas vezes faço, o início e o fim ficaram pré-determinados quase desde o primeiro momento.
O início é o que, logo à partida, pode prender melhor a atenção do leitor. O fim é aquilo que mais fica presente, para gosto, desgosto ou surpresa do leitor. E é fundamental que sejam ambos momentos “fortes”.
O percurso da história, entre a partida e a chegada, vai sendo planeada (e, de certa forma, improvisada, como se eu quisesse que as personagens definissem elas próprias as suas opções) à medida que é escrita. Ou seja: o que hoje aconteceu nas “páginas” em branco do meu computador vai determinar o que vai acontecer amanhã. Embora, neste caso, com uma limitação: a estrutura cronológica também deixava pouca margem para improvisos.
Qual foi a sua inspiração para a criação das personagens, por um lado a Maria, uma mulher fatal (descreveram-na assim no clube de leitura) e por outro o Jim, um homem totalmente apaixonado?
O homem sozinho no mundo (e então num mundo onde as pessoas aparecem de cara tapada e, por isso, sem expressão, quase sem vida) está associado à impressão que me deixou o admirável “I Am Legend”, de Richard Matheson.
A “mulher fatal”… bem, a partir do momento em que introduzi alusões a “Macbeth”, de Shakespeare, a personagem de Maria começou a parecer-se mais com a fatal e perigosa Lady Macbeth. Foi como se, a certa altura (recordando-me do modo como a série “Sons of Anarchy”, de que sou fã, recriou “Hamlet”), quisesse mesmo recriar a personagem de Lady Macbeth.
O final desta história, foi o que imaginou desde o início, ou tinha mais opções em cima da mesa?
Normalmente, o fim está decidido. Acções, falas, movimentos, quem sobrevive e quem não sobrevive… está quase tudo determinado e, por vezes, coreografado, em certos casos como se fosse um “storyboard”. E o que ficou foi, precisamente, o que tinha imaginado.
Além deste livro mais recente é autor de outros livros, nomeadamente duas séries mais conhecidas, Não Matarás (2010) e As Investigações de Gabriel Ponte (2013). Em ambas as séries ligadas a investigações. Contudo ambos ficaram apenas pelos três livros. Era esse o objetivo, criar trilogias ou à partida haveria mais livros?
Não, nunca foi. No primeiro caso, a decisão de parar foi do editor (e não se deveu a motivos puramente comerciais, mas a um conflito entre este autor, como tradutor, e o editor).
No segundo caso, houve uma decisão comum do editor e do autor de que a falta de interesse do mercado, apesar de todas as opiniões serem sempre favoráveis, não justificava o investimento que o editor e o autor teriam de continuar a fazer. A decisão foi tomada num dia em que vi que as vendas de uma autora norte-americana de que já gostei muito também não entusiasmavam.
Há possibilidade de os mesmos virem a ser lançados?
Sim, dependendo de outros fatores.
Em 2019 fui contacto pelo realizador e produtor Leonel Vieira para a adaptação ao cinema e à televisão de “Morte nas Trevas”. É um projeto que está em muito boas mãos e que, sendo concretizado, poderá levar ao relançamento das histórias que foram publicadas e à sua continuação.
Até agora, porém, não parece ter sido possível a concretização desse projecto.
As Investigações de Gabriel Ponte passam-se nas Caldas da Rainha, onde reside. Não é costume vermos este tipo de histórias fora de Lisboa. Foi esse um dos seus objetivos, mostrar outra parte do país?
Foi mais a constatação de que é possível encontrar, mesmo nos meios mais pequenos, locais, ambientes ou ideias que podem integrar um “thriller”, como as águas sujas da Lagoa de Óbidos (em “Triângulo”) ou as áreas florestais onde ninguém mora (“A Guerra de Gil”). Mas também me afastei daqui: no caso de “O Último Refúgio”, a praia é uma praia a sul da Nazaré chamada Salgado, em “Triângulo” tive também como cenário um santuário monumental que existe perto de Vila Nova de Tázem e cujas origens nunca descobri.
Digamos que há muitos sítios onde se podem esconder cadáveres…
Tem, contudo, uma outra série de livros (também ela de três volumes apenas) intitulada de O Estado do Crime Series (2004) publicada pela Temas e Debates que já não se encontra à venda. Planeia uma reedição destes livros ou é algo que não está nos seus planos?
Dois desses títulos foram publicados em França, em duas edições (Chandeigne e Le Livre de Poche), e com êxito: “Ulianov e o Diabo” (“Mort sur le Tage”) e “O Clube de Macau” (“Le Club de Macau”). Seria interessante reeditá-los em Portugal, naturalmente, além de “Crimes Solitários” e de “A Guerra de Gil”.
Mas também pode pôr-se a hipótese de os disponibilizar gratuitamente na internet, na língua em que foram escritas. O único problema é não ter os originais em ficheiro digital e teria de os passar para o computador para depois conseguir essa divulgação. E há o risco de começar a reescrevê-los se o fizesse. E então já seriam histórias novas.
Quanto tempo em média dedica à pesquisa para os seus livros?
Depende do tema. Pode exigir-me ir falar com alguém ou ficar-me apenas pela Internet (no caso de Baltimore, em “O Último Refúgio”), ou ir mesmo ao local, se for possível.
Quais as suas fontes de inspiração para os seus livros?
A realidade, sempre. Passada pelo crivo da minha imaginação.
Para quem leu “O Último Refúgio” e não leu mais nenhuma obra sua, qual aconselha a ler a seguir?
Todas, à partida, claro… Mas “Ulianov e o Diabo” é fundamental. Depois, talvez “Morte na Arena”. São onze, é difícil escolher.
É tradutor profissional, qual o maior desafio nesta profissão nos dias que correm?
Já não sou, porque estou reformado. Mas fui tradutor, tendo deixado 103 livros publicados desde 2007 até ao momento em que cessei essa minha actividade.
O maior desafio é, e sempre foi, para mim, a capacidade que o tradutor pode ter de acompanhar integralmente o estilo e as opções do autor, seja na não-ficção, seja na ficção. Parece-me que há tradutores que encaram as traduções que fazem como se fossem os romances que gostariam de ter conseguido escrever.
O tradutor não pode ter estados de alma. Quem manda é o autor e depois o cliente direto do tradutor que é o editor.
Que autores são para si uma inspiração?
Entre os que aprecio não vejo quem me pudesse ter inspirado diretamente, até porque sempre li muito e não guardei um único autor como inspiração, em estilo ou em tema.
Gostei muito de ter lido Stephen King (quando ainda era desconhecido em Portugal) ou H. P. Lovecraft, e Lawrence Durrell antes de King. Gostei muito de ler Lee Child (da sua fase inicial), de Elmore Leonard, de James Elroy, de Ruth Rendell (e que bem que ela escrevia!), de Carl Hiaasen, de John Le Carré. Gostei muito de Aquilino Ribeiro e, bastante mais tarde, do estilo de Fernando Assis Pacheco.
E se pudesse levar ir jantar apenas com um qual escolhia e o que lhe perguntaria?
E quem escolheria numa situação dessas? Durrell, talvez (e digo isto, sabendo que morreu em 1990). Talvez porque comecei agora a reler “Justine” e tenciono seguir para os restantes três romances que compõem o “Quarteto de Alexandria”, e que também li na adolescência. O modo como ele escreve sobre Alexandria e as suas personagens é fascinante.
Já passou por diversas editoras ao longo do seu percurso como autor, que maior lição retira dessa experiência?
A de que é essencial ter, como felizmente sempre tive, interlocutores de grande qualidade entre os profissionais que têm a responsabilidade de escolher os títulos que saem e de determinar a melhor maneira de eles irem ao encontro dos leitores.
O original que sai das mãos do autor raramente é perfeito e exige sempre uma segunda leitura e, onde necessário, um debate aberto com a pessoa (editor ou editora) que desempenha essa tarefa na empresa que vai publicar o seu livro. Essa pessoa tem o distanciamento para perceber o que está bem e o que está menos bem e a sua intervenção melhorará os originais.
No caso de “O Último Refúgio” tive a felicidade de poder trabalhar com Teresa Matos, editora do Clube do Autor, e com Rui Augusto, revisor e editor de texto. E a obra ficou melhor.
É por estes motivos que a edição de autor é um erro crasso. É necessária essa intervenção profissional, que é uma bênção para o autor, por mais duro que o diálogo possa ser.
Que conselho dá para quem está neste momento a pensar em escrever um thriller?
Além do essencial que é ler, e muito, autores portugueses e estrangeiros?
Dou mais três conselhos: vejam as grandes séries de televisão (da actual idade de ouro da televisão, pelo menos “The Wire”, na HBO, “Forbrydelsen/The Killing” e “Sons of Anarchy”, na Netflix); evitem os estereótipos (os “serial killers” já enjoam, bolas!…); e tenham presente que há ideias que são realmente muito boas mas que só podem ser retomadas por alguém com muita qualidade narrativa (nem toda a gente consegue transplantar uma sequência genial de “O Couraçado Potemkhine” para “Os Intocáveis” como Brian de Palma fez), mesmo que os seus editores nem o percebam…
Por fim, o que nos pode contar sobre os seus projetos num futuro próximo?
Sempre que dei um livro por terminado e o vi publicado, pensei no que poderia seguir-se.
Tenho, nesta altura, uma história esboçada, e devidamente arquivada e… pronta a escrever. É mais um “thriller”, completamente diferente, passada nos subúrbios de Lisboa e com cães. Poderá haver uma oportunidade para publicar a história e, portanto, para ela ser escrita. Mas, se não houver, também não ficarei angustiado.